Há coisas que (agora) só acontecem com o São Paulo
Há coisas que só acontecem com o Botafogo, mas também acontecem com o Palmeiras, o Corinthians, o Cruzeiro, o Atlético… Por mais que o texto de Paulo Mendes Campos (leia a íntegra abaixo) tenha tornado uma de suas frases uma espécie de carma botafoguense, há momentos em que parece haver uma praga sobre o seu time. E só sobre o seu time.
O que acontece com o São Paulo, hoje, não é exatamente assim, mas também estamos longe dos tempos em que a bola entrava e dava a vitória ao tricolor no último minuto. Está longe de ser uma grande moleza torcer para o São Paulo, como Milton Neves dizia na rádio Jovem Pan no início dos anos 90.
A Ponte Preta venceu o São Paulo por 1 x 0, com gol de Reinaldo, eleito o pior lateral-esquerdo da história tricolor por uma série de torcedores exagerados. Reinaldo não é lá essas coisas e… marcou o gol da derrota são-paulina.
Então veja como hoje há coisas que acontecem com o São Paulo e antes só aconteciam com outros clubes.
Os conselheiros vazam notícias sobre crises internas na vida política.
O time depende de uma reunião do Conselho Deliberativo para ter o dinheiro necessário para pagar o direito de imagem atrasado.
A torcida uniformizada vaia sistematicamente um jogador, mas a torcida comum, na arquibancada e numerada, resolve aplaudi-lo.
Perde em casa para um time improvável, da Bolívia, que não vencia uma partida com o visitante havia 35 anos.
Um ex-jogador do clube, que saiu execrado, condenado como um dos piores de todos os tempos, marca o gol da vitória do adversário por 1 x 0.
Nos bons momentos, tudo isso parecia acontecer no Botafogo, no Palmeiras, no Corinthians, no Atlético… No São Paulo, não.
Hoje anda acontecendo. O trabalho deste momento é impedir que continue se repetindo.
Abaixo, o texto de Paulo Mendes Campos, onde está a frase famosa: "Há coisas que só acontecem ao Botafogo."
A frase exata também foi editada, para parecer que o Botafogo estava condenado pelo destino. Não está. Nem o São Paulo.
O BOTAFOGO E EU (Paulo Mendes Campos)
Que partilhamos defeitos e qualidades comuns, não há dúvida. Nos meus torneios, quando mais preciso manter os números do placar, bobeio num lance, faço gol contra, comprometo, tal qual o Botafogo, numa difícil campanha.
A mim e a ele soem acontecer sumidouros de depressão, dos quais irrompemos eventualmente para a euforia de uma tarde luminosa. Sou preto e branco também, quero dizer, me destorço para pinçar nas pontas do mesmo compasso os dualismos do mundo, não aceito o maniqueísmo do bem e do mal, antes me obstino em admitir que no branco existe o preto e no preto, o branco.
Sou um menino de rua perdido na dramaticidade existencial da poesia; pois o Botafogo é um menino de rua perdido na poética dramaticidade do futebol. Há coisas que só acontecem ao Botafogo e a mim. Também a minha cidadela pode ruir ante um chute ridículo do pé direito do Escurinho.
O Botafogo tem uma sede, mas esqueceu a vida social; também eu só abro os meus salões e os meus jardins à noite silenciosa. O Botafogo é de futebol e regatas; também eu sou de bola e de penosas travessias aquáticas. O Botafogo é um clube com temperamento amadorístico, mas forçado, a fim de não ser engolido pelas feras, a profissionalizar-se ao máximo; também sou cem por cento um coração amador, compelido a viver a troco de soldo.
Reagimos ambos quando menos se espera; forra-nos, sem dúvida, um estofo neurótico. Se a vida fosse lógica, o Botafogo deixaria de levar o futebol a sério, fechando suas portas; eu, se a vida fosse lógica, deixaria de levar o mundo a sério, fechando os meus olhos.
O Botafogo é capaz de quebrar lanças por um companheiro injustiçado pela Federação; eu aguardo a azagaia de uma justiça geral. O Botafogo pratica em geral o 4-3-3; como eu, que me distribuo assim em campo: no arco, as mãos, feitas para proteger minha porta; na parede defensiva, meus braços, meu peito aberto, meus joelhos e meus pés; no miolo apoiador, trabalho com os pulmões e o fígado; vou à ofensiva com a cabeça, a loucura e o coração. Falta um, Zagalo. Em mim, essa energia sem colocação definida é a alma, indo e vindo, indistinta, atônita, sarrafeada, desmilingüindo-se até o minuto final.
O Botafogo é capaz de cometer uma injustiça brutal a um filho seu, e rasgar as vestes com as unhas do remorso; como eu.
O Botafogo põe gravata e vai à macumba cuidar de seu destino; eu meto o calção de banho e vou à praia discutir com Deus. O Botafogo não se dá bem com os limites do sistema tático; tem que ser como eu, dramaticamente inventado na hora.
Miguel Ângelo é botafogo, Leonardo é flamengo, Rafael é fluminense; Stendhal é botafogo, Balzac é flamengo, Flaubert é fluminense; Bach é botafogo, Beethoven é flamengo, Mozart é fluminense. Sem desfazer dos outros, é com eles que eu fico, Miguel, Henrique, João Sebastião.
Dostoiévski é Botafogo, Tolstói é flamengo (na literatura russa não há fluminense); Baudelaire é fluminense, Verlaine é flamengo, Rimbaud é Botafogo; Camões não é vasco, é flamengo, Garrett é fluminense, Fernando Pessoa é Botafogo. Sim, Machado de Assis é fluminense, mas no fundo, no fundo, debaixo da capa cética, Machado, um bairrista, morava onde? Laranjeiras!
O Botafogo é paixão, é Brasil, é confusão; Paulo Mendes Campos é paixão, Brasil, confusão.
O Botafogo conquistou um campeonato esmagando inesperadamente o Fluminense de 6 x 2; uma vez, enfrentei um dragão enorme e entrei no castelo encantado.
O Botafogo, às vezes, se maltrata, como eu; o Botafogo é meio boêmio, como eu; o Botafogo sem Garrincha seria menos Botafogo, como eu; o Botafogo tem um pé em Minas Gerais, como eu; o Botafogo tem um possesso, como eu; o Botafogo é mais surpreendente do que conseqüente, como eu; ultimamente, o Botafogo anda cheio de cobras e lagartos, como eu.
O Botafogo é mais abstrato do que concreto; tem folhas-secas; alterna o fervor com a indolência; às vezes, estranhamente, sai de uma derrota feia mais orgulhoso e mais Botafogo do que se houvesse vencido; tudo isso, eu também.
Enfim, senhoras e senhores, o Botafogo é um tanto tantã (que nem eu). E a insígnia de meu coração é também (literatura) uma estrela solitária.
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